segunda-feira, fevereiro 12, 2007

hoje já é amanhã

Acabou a campanha, acabou finalmente a discussão de manhã à noite, acabou finalmente a berraria até à exaustão... pelo menos enquanto o projecto de lei não sair da forja...
Felizmente que a noite de ontem também chegou ao fim com tranquilidade (ao bom estilo de Paulo Bento), fora alguns comentários de mau gosto e aproveitamentos vindos da esquerda, que se quis conotar, desde o início, com o SIM - e talvez o tenha conseguido.
E no fim, foi tudo para casa. Em paz.

despenalizar?
Tentou distinguir-se despenalização de liberalização. O SIM falava em despenalizar, enquanto o NÃO dizia que não queria liberalizar. E foi uma discussão intensa...
Ora, despenalizar é não punir alguém por cometer um crime, mas o crime existe e existe a condenação. Liberalizar é deixar ao livre-arbítrio de alguém agir de uma determinada conduta, ainda que haja limites. Assim, o que os portugueses votaram foi, juridicamente, uma liberalização. Agora, o senso comum pode chamar-lhe o que quiser...
Eu votei SIM, com dúvidas (como certamente a maioria dos eleitores), mas votei SIM, por que não entendo que possa haver uma condenação sem pena - uma mera condenação social - e isso sim era uma despenalização. A partir de agora, o aborto vai ser livre, até às 10 semanas de gestação.
Dúvida: a partir das 10 semanas e 1 milésimo de segundo, deve a mulher ser condenada e punida? Deve! Se há um limite, se há normas que prevêm penas, o direito deve funcionar. Aceitámos a interrupção voluntária da gravidez, mas deverão manter-se os limites. Não podemos aceitar que, daqui a poucos anos, se referende o aumento do limite para as 16, 20, 30, 40 semanas, até ao último dia antes do nascimento. O bom senso tem de ter limites.
Mas os juízes existem exactamente para realizar um exercício de ponderação. Se assim não fosse, os tribunais eram máquinas que subsumiam os casos concretos na factispecies legal e aplicavam a pena devida.

os partidos
Por mais uma vez, há que recordar que a vitória do SIM ou do NÃO nunca seria (ou não deveria ser) a vitória da esquerda ou da direita, mas sim a vitória de uma moral ou de outra, a vitória de uma perspectiva cívica sobre outra. Porque o referendo sobre o aborto, na sua génese, não incide sobre um problema político, mas sobre uma opção moral, sobre uma situação concreta socio-circunstancial.
Os partidos que se aproveitaram do SIM ou do NÃO, mais não fizeram do que confundir a politiquice com uma concepção moral de cada um. E tenho a certeza que perspectiva moral de muita gente que votou SIM é bem avessa à opção de abortar, mas aceita que alguém o faça por uma razão que, em princípio, será ponderada. O que não significa que não haja quem o decida fazer, de cabeça quente. Isso será um facto com o qual teremos de nos habituar a viver. E por mais difícil, desumano e cruel que nos possa parecer, foi essa a decisão popular.
Se alguém disse ontem e se alguém disser hoje ou amanhã que foi uma vitória da esquerda e uma derrota da direita, está redondamente enganado. Engana os outros e engana-se a si próprio. Embora pareça, ontem houve um referendo e não um acto eleitoral. A regionalização também perdeu em 1998, mas Guterres ganhou em 1999.
Todavia, apesar da esperada moderação, Marques Mendes demonstrou no seu discurso um pouco de desolação, o que prejudicou a imagem 'independente' do partido. Isto porque o PSD foi o único partido parlamentar a não confundir aborto com política. E bem.
Deste modo, não partilho da opinião daqueles que sustentam que a direita se está a afastar do Portugal moderno. Não. Não e não. A direita tem o seu lugar, na defesa da cultura, dos valores e dos princípios tradicionais do país. No entanto, num referendo como este, deveria actuar nos movimentos adequados e não nos partidos, em que menos gente acredita.
[Não é em vão que, em Itália, já não há partidos a ganhar eleições, pois adoptaram o nome de 'movimentos'.]

então e a abstenção?
Devido ao elevado nível de abstenção, o resultado do referendo não é juridicamente vinculativo. Contudo o Governo já tinha assumido um compromisso com os portugueses. Ao prever que a abstenção seria alta (porque os portugueses já não têm paciência para eleições), José Sócrates prometeu que iria respeitar o resultado do referendo, com ou sem abstenção. E quanto a este ponto, temos de ser sérios: se houve partidários do NÃO que não foram votar, foi porque tinham dúvidas, assim como os terá também havido do lado do SIM. Portanto, todos já esperavam qual seria a posição do Governo. Não houve frustração das expectativas. A maioria parlamentar respeitará a decisão da maioria dos votos expressos. Assim foi em 1998, assim será em 2007.

por cada aborto, um subsídio para quem tem filhos
Foi a proposta dos movimentos do NÃO. E assim como, em 1998, a ministra Maria de Belém propôs que os movimentos do NÃO colaborassem no planeamento familiar, agora é o NÃO que vem, com toda a razão e legitimidade, exigir, a par de uma política de apoio à prevenção, medidas de incentivo à natalidade, porque, além de Portugal estar a perder cada vez mais jovens, prevê-se que os casos de aborto provocado aumentem, como na maioria dos países que descriminalizaram a IVG.

hoje já é amanhã
Tínhamos já dito [6 de Fevereiro] que Portugal estava a atravessar uma 'pausa para café', que tinha parado umas semanas para discutir um único assunto e que na segunda-feira seguinte voltaria tudo ao mesmo. E quem viu o cartoon de Bandeira, hoje no Diário de Notícias, não pode estar mais de acordo com a figura que ali é caracterizada - uma senhora que já está farta de 'sins' e 'nãos' e que quer voltar aos 'pode ser', 'quem sabe' e 'talvez'.
Porque, antes do referendo, éramos realmente, e com prazer, o pacato país do 'talvez', a serena nação do 'mais ou menos'. Hoje voltámos a sê-lo, graças a Deus.

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